O grito, serendipia!

Nesses dias nebulosos, descobri que de tempos em tempos, quase inconscientemente, me apego a alguma palavra. O movimento do trânsito me enlouquece, ligo o rádio, música gospel, música sertaneja, notícias… Vou girando o botão na ânsia louca de sintonizar uma música suave. Um carro enorme passa ao lado, trás no vidro traseiro retratos de rostos incendiados, imaculados pelos incautos e dentro de mim o grito se forma. Para muitos, o bizarro é bonito. Sussurro a palavra do momento: serendipia. A colega cronista Lucilene Machado – curvo a cabeça, agradecido – desencavou essa palavra e a jogou diante dos meus olhos para nunca mais escapar. Assim, antes de gritar, eu digo para mim mesmo: serendipia. E tudo se acalma. É isso ou um ópio qualquer. Prefiro a doçura da palavra.  Meus dedos não necessitam dos olhos para girar o botão de sintonia do rádio, na sexta tentativa, enfim, me permito ser invadido pelo som mavioso da voz de Elis, “O bêbado e a equilibrista”, e sorrio num leve balançar de cabeça enquanto os versos da canção descortinam a história diante dos meus olhos. O bêbado representa os artistas, a equilibrista é a democracia, se equilibrando na corda bamba. Aldir Blanc, você é genial! Serendipia é uma palavra de origem espanhola, cujo significado remete a uma descoberta feita ao acaso. Na mente desfila a mensagem de um jovem nas redes sociais; é o ódio, o equívoco, a contradição. Serendipia! “Quem não recorda o passado está condenado a repeti-lo”. Esse aforismo de Santayana provoca em mim um riso de certezas. Tenho o costume de sorrir, no contentamento e no espanto, mesmo o grito seco ainda preso na garganta. Quase sempre, gritar é libertador, eu sei, mas no abafo, no murmurar palavras, encontro a fórmula irresistível para acalmar meu desassossego. Ah, o grito… Já sentiu vontade de gritar, assim, do nada, em público, numa daquelas palestras chatas e intermináveis, ou quando algo completamente incompreensível acontece de repente? Prossegue o desfile das carruagens de fogo e ira. Prendo o desabafo na garganta e não é um grito qualquer, é a pintura de Munch, com as mãos presas entre os ouvidos, a boca bem aberta, caminhando enlouquecido pelo mesmo sinistro corredor presente na cena de “O iluminado”, até encontrar uma cortina aberta, assoprada pelo vento. O sorriso de um menino poeta surge na minha mente. Ali encontro o meu refúgio. Ainda assim, não fosse o som dos pingos da chuva no para-brisa, num ritmo suave formando a palavra serendipia, gritaria diante da tempestade que se mostra adiante. O menino poeta é o símbolo de um resto de esperança, um Carlitos oferecendo o chapéu, seduzindo tantos outros, atraídos pelas palavras que despencam de suas mãos. Que pena o contraponto, reconhecer entre os bêbados a cruel poesia, feito anátema, deslizando em longos fios de cabelos negros, espantosamente, chupando manchas torturadas. Chora o menino do sorriso lindo o mesmo pranto de Marias e Clarices. Serendipia, penso, respiro, me acalmo:  depois da tempestade, a esperança equilibrista haverá de voltar. Meu grito é o bêbado, serendipia é meu equilíbrio. No semáforo fechado as nuvens negras sobrevoam a cidade, o mata-borrão do céu agora é muito maior, permeado pelo cego fanatismo. Murmuro levemente: serendipia… Há um rosto atrás do grito – enquanto os carros passam – meus olhos tentam enxergar as curvas do caminho; talvez se percam na esquina e o desastre não aconteça. E a tarde cai novamente feito um viaduto, restando em mim o último sopro da utopia, a palavra desprendida da garganta, bem devagar, separada em saborosas sílabas da esperança equilibrista: serendipia! Grito novamente e sorrio. Na corda bamba de sombrinha, o grito precisa ecoar.

Share on facebook
Facebook
Share on twitter
Twitter
Share on whatsapp
WhatsApp
Share on print
Imprimir

Loja Virtual

Busca

Está com dificuldades para encontrar? Utilize os filtros abaixo para aprimorar a sua busca.

Categorias