A cabeça de boi, dois peixes de lágrimas e os segredos da prosa.

Num lugar onde a terra fica mais perto da lua, a deusa Yebá Bëló, debruçada na janela do seu castelo de quartzo, avistou a mata se abrir num rufar de ventos, mostrando diante de seus olhos de pedra imagens do futuro.
Em meio a névoa que se formou, enxergou uma bela cidade, das ruas largas e rodeada de flores de cores diversas. Luz, muita luz. Era um campo bem grande, e as flores de suas árvores tinham o perfume de terra vermelha.
A deusa se emocionou. Nunca antes havia visto um lugar tão belo. Seu rosto pálido enrubesceu e chorou como cantam os passarinhos. Duas gotas de lágrimas caíram em meio ao vendaval, escorreram da janela até o jardim, mergulhando num pequeno veio d’água. Não conseguiram se juntar, a corrente d’água logo se tornou enxurrada, levou cada gota para um canto, engolidas pelo redemoinho que se formou.
Yabá Bëló fez um gesto de mãos e as gotas se transformaram em peixes da cor de lágrimas.
Cada peixe sentiu a presença do outro e tentaram se encontrar, nadando loucamente entre os veios d’água como se estivessem em um labirinto.
A deusa sorriu: “tudo o que é sagrado um dia se encontra” fechou a janela e se trancou no seu castelo de quartzo levando na mente a imagem da bela cidade que ainda não existia.
Tempos depois…
Aconteceu durante o eclipse, quando de repente o dia se tornou noite, enlouquecendo os animais.
O boi desgarrado caminhou lentamente pelo topo de uma pequena elevação, percebeu, com o encantamento só permitido aos bois em dias de eclipses, ao longe o encontro de dois córregos como se fizessem parte de um só.
Se pudesse pensar, se tivesse a capacidade de imaginar, diria o boi consigo mesmo: que campo grande lindo é aquele? E de tão encantado, desconsiderou os perigos, prosseguiu caminhando até que de repente surgiu à sua frente uma onça faminta. Dos olhos da pintada, um raio de ataque refletiu. O boi não recuou, sabia que seria facilmente alcançado. Entre eles existia apenas um imenso tronco de árvore quase seco, restos de uma gigantesca e milenar árvore, lisa e sem galhos, há poucos passos do boi, distante mais de cinquenta metros da onça.
Na esperteza consagrada aos bois apenas nos dias de eclipse, correu até o tronco da árvore lisa, usou o casco afiado e o chifre pontiagudo, fez um esforço supremo até conseguir se pendurar na ponta da árvore seca. A onça ficou dando voltas, urrando de raiva, a fome escapando pela boca em forma de baba. Se pudesse falar, a onça, que nada sabia dos poderes do eclipse, reclamaria com a natureza: como pôde o boi escalar uma árvore, justamente a única sem galhos, na qual não posso subir para caçá-lo? Por instinto, imaginou que uma hora o bicho desceria. Assim pensando, permaneceu em vigília. O eclipse acabou e o dia se transformou em noite diversas vezes, nem a onça desistia, nem o boi descia. No dia que o céu não brilhou por conta das nuvens, a onça resolveu buscar outra caça. O boi não percebeu, morreu na noite seguinte, de frio, medo e sede. Seu corpo apodreceu, despencou aos poucos, até restar apenas a cabeça em cima do mastro enorme, os olhos secos voltados para o local de encontro entre os dois córregos, como se fosse um fiel vigilante.
Durante diversos eclipses, os peixes da cor de lágrimas prosseguiram se buscando.
Entre a correnteza um foi para o sul, outro para o norte, fizeram o contorno no delta do grande rio, cada um a seu tempo, invadiram os corixos, nadaram, nadaram e nadaram sem descanso.
No mesmo instante que o boi morria, há poucos quilômetros da árvore seca e sem galhos na qual pendia a cabeça do boi, a correnteza se tornou mais branda e o barulho do encontro dos dois córregos fez brilhar as pedras do encosto.  O primeiro peixe era o feminino e se chamou de Prosa, o segundo peixe chegou em seguida, de nome Segredo. Seus olhos se encontraram finalmente. Nadaram num resto de força até ficarem bem perto, tão perto, e se peixes pudessem sorrir, teriam sorrido, se pudessem falar diriam alguma frase de amor. Prosa e Segredo finalmente unidos, escorados numa pedra coberta de musgos.
Então da sombra de um vegetal, partiu fulminante o voo de uma garça. Primeiro abocanhou a Prosa, deixando o Segredo assustado, sem ação, dando voltas em torno de si, apavorado de um tanto, não percebeu o novo ataque da ave insaciável, que o apanhou num certeiro ataque.
A garça pousou acima de uma pedra no meio do córrego para descansar. Prosa e Segredo finalmente se tornaram um só dentro da barriga da ave, juntos formaram a lágrima densa e forte, salgada de um tanto, tal qual um facho de fogo a arder dentro da barriga do bicho.
A ave sentiu a explosão dentro de si. Um suspirar profundo, o lamber apressado e trêmulo das patas, tentou alçar voo, arrastou-se pesada e surpresa, fatigada ao extremo, até tombar em meio à terra vermelha.
O passar do tempo incumbiu a terra vermelha que tombou a garça a se transformar num lençol de grama da qual nasceram diversos pares de flor petalada.
Flores e espinhos.
A beleza das flores atraiu as abelhas e as borboletas e elas espalharam os pólens por todo aquele imenso campo grande.
E passaram-se anos.
Os homens chegaram tempos depois e se deram com a visão dos majestosos e coloridos ipês floridos de várias cores.
Ninguém sabe ao certo qual foi o primeiro que por aqui chegou, se o fazendeiro da Cabreúva, o viajante mineiro, ou a escrava liberta.
Certamente, porém, foi Eva a primeira a pisar no espinho e se deixar dominar pelo perfume da terra vermelha. Apesar da dor provocada pelos espinhos enganchados nos pés, se encantou com o cheiro e a beleza da flor, levou-a até perto do rosto e assoprou de um tanto, fazendo os pólens voarem ao seu redor até formar no ar o rosto sagrado de Yebá Bëló.
Eva sorriu, os grandes olhos aguados, duas lágrimas escapadas, salgando a terra na qual seus pés se prenderam para sempre.
Tempos depois, antes dos quartéis e dos trens, o velho fazendeiro resolveu erguer uma porteira diferente das demais: forte e potente, ferro de pouca liga, quase puro, com cinco ou seis dobradiças, para ranger alto quando tocadas, e assim avisar da chegada das boiadas: o portão de ferro. Dos campos de vacaria vieram as comitivas e os carretos. O gado abriu um trieiro na mata, depois os homens marcaram a estrada com facão, abriram o caminho na força das mãos, até se encontrarem exatamente diante do imenso mastro de árvore na qual pendia uma esplêndida cabeça de boi.
Mais tempo correu e hoje o portão de ferro é uma Avenida movimentada que dá acesso ao monumento da Cabeça de Boi.
Nasci ali bem perto, no quintal longo e estreito no qual pisei numa dessas flores das pétalas coloridas e o espinho formou raízes nos meus pés.
Penso nisso enquanto o meu carro para no cruzamento onde antes existia o portão de ferro. Aguardo o sinal abrir e depois percorro até quase o final da Avenida, passo em frente à antiga casa que nasci, aquela mesma da qual fomos expulsos por razões que nenhuma prosa consegue desvendar o segredo. São espinhos e lágrimas, palavras que não rimam, razões enterradas.
Passeia por ali o vulto de uma ilusória Aurora.
Viro à direita, atravesso os quarteis, prossigo no mesmo caminho das boiadas, até dar de frente com o monumento erguido em homenagem à cabeça de boi.
Então ergo os vidros do carro, permito o vento bater forte no meu rosto até salgar a minha pele com o cheiro da terra vermelha, sinto minha alma envolvida pelos pólens das flores e a dor aguda dos espinhos fincados nos pés.
Olho em torno e contemplo a cidade nascida de duas gotas de lágrimas de uma Deusa, aquele mesmo campo, tão grande e floreado, que ainda hoje se reflete na cabeça de boi.

Vou riscar as tatuagens e guardar o meu amor na masmorra.

O amor é um sentimento que mantenho preso numa masmorra. Quando solto é fogo que queima, o declínio da razão. Sou cega quando me apaixono, me transformo numa maluca, incapaz de raciocinar corretamente.

O que se passou pela minha cabeça quando resolvi tatuar o nome dele no meu braço? Não contente, acrescentei o símbolo do Flamengo, time que ele ama, logo eu, que nunca gostei de futebol. Gabriel não merecia nem um pingo da dor que senti. Em algum momento da nossa relação a luz se tornou intensa, veio a cegueira, o transe completo e o pássaro acabou liberto da gaiola.

Quando nos conhecemos, Gabriel fixou o rosto em mim na sala de aula de um curso de Excel, armado naquele jeito estranho de olhar, blasé e vagaroso, o sorriso que não começava nos lábios e sim nas rugas dos olhos. Toda mulher enxerga sem encarar: o homem era pequeno, mas confiante. Sou uma mulher grande em tudo, quase dois metros de altura, do nome difícil, Stephania, mesmo nome da minha bisavó, uma polaca de sangue forte, mulher benzedeira e parideira, mãe de doze filhos.

Os opostos se atraem. Eu queria apenas aprender a mexer com planilhas, a empresa estava pagando, precisava prestar atenção. O Gabriel não passava de um vagabundo que o pai pagou o curso para se livrar da presença dele dentro do quarto o dia todo. 

No intervalo, ele sentou-se na outra ponta da mureta e não desistiu enquanto não olhei para ele. Sorriu aberto, aquele riso feito cascata, começando nas rugas dos olhos e só depois atingindo a boca.

Um homem tão pequeno, o que poderia querer com uma mulher enorme como eu? Ele insistiu, o rosto fixo em mim. Retornei o sorriso e abaixei a cabeça. Depois me puni com um soquinho na coxa, detesto quando abaixo a cabeça.

No outro dia já se sentou ao meu lado, ignorando a aula, o professor, as fórmulas e os números nas planilhas.

– Oi, eu sou o Gabriel. – Disse, sem tremer a voz, o ar sonso-blasé.

– Oi – não revelei o meu nome, mas senti o rosto ferver e ele percebeu – 

– O que vamos fazer quando sairmos daqui Stephania?

Como sou burra, é claro que ele sabia o meu nome, ouviu diversas vezes durante a chamada. Foi então que o monstro da sedução me abraçou. Eu não tinha nada para fazer, nenhuma audiência, nenhum cliente para atender, nada.

– Não tenho nada para fazer. Você tem?

Voz baixa, rouca, o pensamento imaginando um rio buscando a cachoeira.

Mostrou-me o molho de chaves.

– Estou de moto. Um passeio?

Dei outro soquinho na coxa, a perna ameaçou tremer. Pensei dizer não, mas eu realmente não tinha nada para fazer e minha única dúvida era se aquela criatura tão pequena sabia pilotar uma moto.

– Tudo bem, vamos.

E não olhei mais para ele. A aula tinha ainda duas horas de duração, mas demorou eternamente.

Na saída, rosto lívido, o procurei em meio à multidão, até dar com ele no estacionamento da escola, sentado na motocicleta e olhando para mim, o sorriso já instalado nas rugas dos olhos, pronto para descer até a boca. 

Pelo menos a moto não é pequena, imaginei e sorri.

Montei num passar de perna único, como se fosse acostumada a andar de moto, ainda que a última vez tivesse acontecido na adolescência.

– Você se parece com a Marisa.

– Marisa?

– Marisa Horta.

– Ah sim… (Marisa Orth, ela de novo, sempre fazem essa comparação odiosa).

– Aonde vamos?

– Dar um rolê. Coloque o capacete e segura firme na minha cintura.

Juntei as mãos e ele acelerou. Estava um pouco gordo, deu para sentir, mas quando meus braços subiram até os seus ombros, a grande surpresa, ele tinha músculos. Talvez frequentasse alguma academia.

Gabriel rodou o centro da cidade e depois pegou a saída para São Paulo. O tempo todo falava alguma coisa que eu não entendia por causa do vento, e a tudo respondi sim. Quando ele virou e estacionou na garagem de um motel a minha reação foi uma mistura de surpresa, espanto e raiva. 

– Cara, a gente mal se conhece e…

Ele armou no rosto uma expressão de desapontamento, as mãos agitadas tentando ajeitar os cabelos esparramados pelo capacete:

– Você disse sim diversas vezes no caminho.

– Eu não ouvi nada do que você perguntou. O sim foi uma espécie de livramento.

– Até o convite para o motel você não ouviu?

– Não ouvi nada! Vento, capacete, cabelos nos ouvidos, surdez completa, entende? Você foi direto ao ponto, não falou nada de si, já veio me trazendo para um motel, você é maluco…

– Falei que sou solteiro e gosto de você desde os tempos do cursinho.

– Cursinho? Nos anos noventa? Cara, eu tinha dezoito anos!

– Não mudou quase nada…

Fiquei sem graça, um leve rubor tomou conta da minha face, não sabia o que dizer.

– Você nem se lembrou de mim. – Disse e suspirou fundo.

– Olha, não me leve a mal, mas eu nunca….

– Então suba e vamos embora. — Fez ele, um tanto enfurecido: —

Não foi um convite movido pelo sentimento de desculpa ou arrependimento, mas sim uma espécie de ordem, dura, direta e desde que saí da casa dos meus pais, não obedeço às ordens de ninguém. Além do mais, já estávamos mesmo ali e a última vez que fiz amor a Dilma ainda era a presidenta.

E porque os homens podem fazer sexo no primeiro encontro e as mulheres não? O gavião e a galinha? Comigo não. Afinal, ele não era totalmente desconhecido, já tínhamos convivido duas semanas no curso de Excel e fizemos cursinho nos anos noventa.

Apanhei o capacete das mãos dele:

– Tudo bem, vamos entrar.

Ele tremeu, eu dei soquinhos na coxa, e lá fomos nós. Uma cama imensa, o lençol caprichosamente esticado, a luz mortiça da tarde se acabando, o resto do mundo num silêncio cúmplice lá fora e o sorriso do Gabriel, aquele que começa nas rugas dos olhos e vai descendo até os cantos da boca, bem diante de mim.

Nada mais posso contar, minha intimidade está instalada no escuro de uma masmorra, que fica após a ponte acima do lago, no qual passeiam, de um lado para o outro, diversos crocodilos. Nem às sombras confesso os meus gemidos. Mas posso dizer que foi bom, quem diria, aquele homem pequeno…pequeno em tudo…Ah, embaixo da ponte que protege a masmorra há uma corrente de água cristalina em busca da cachoeira…

No outro dia ele já me esperava em frente à escola, ornado de um brilho de triunfo difícil de explicar. Me apanhou pelas mãos e tentou me beijar. Dei-lhe o rosto, neguei o que ofertei com fartura menos de vinte e quatro horas antes, entre quatro paredes. Ele insistiu e cedi sem muito esforço.

Eu não queria namorar ninguém, mas quem sabe, depois de ontem, os crocodilos que protegem a masmorra morreram afogados, colocando fim às noites solitárias…

O que começou num encontro casual, se tornou sério, engatamos firme o namoro e no começo foi tudo tão bom… Gabriel me apresentou à sua família, fiquei amiga de todo mundo, na segunda semana a mãe dele já me chamava de filha.

Nunca se acostumaram com o meu nome, para eles eu era uma mulher enorme do nome confuso. E assim, de Stephania, me transformei na Estepe. No começo achei lindo, divertido, fofo: “Estepe, cunhada linda, mulherão da porra essa Estepe, venha Estepe, o jantar está pronto, Estepe, amada Estepe”.

Durou até o domingo perto do natal quando surgiu por lá, “só de  passagem”, a ex do Gabriel, uma moça magra, dos olhos enormes, nariz adunco, feia de rosto, mas das nádegas salientes e o flagrei olhando para ela, armado naquele ar blasé-vagaroso, as rugas dos olhos se contorcendo, o riso pronto a se armar.

Estou sempre duas doses acima na desconfiança. Num instante, no meu íntimo pensamento, ser chamada de Estepe se transformou num deboche. O ciúme a tudo desgasta, até mesmo o amor. Eu sempre fui muito desconfiada. O castigo dos céticos é duvidar de tudo, inclusive das próprias dúvidas. Fui levando o nosso caso por mais um tempo, mas o alerta estava definitivamente ligado: nas festas, nos bares, nas reuniões da família, sempre tinha outra mulher e lá estava aquele olhar sonso-blasé, o mesmo risinho do Gabriel, começando nas rugas dos olhos e descendo até os cantos da boca…

Como não percebi antes? Gabriel sempre jurou fidelidade, mas que mulher fraca é essa que acredita em juras de homem, perguntaria minha finada avó, a velha polaca. Eu que não sou, respondo para o vento.

E então a tatuagem deixou de fazer sentido, se tornou a raiz dos meus arrependimentos, uma prova desenhada de que fui enganada.

Queria voltar no tempo, quando a moto virou a primeira esquina, daria um toque nos ombros do Gabriel pedindo para voltar, sem lhe dar chances para retrucar, mantendo o rosto sério enquanto ajeitava os meus cabelos assoprados pelo vento.

– Como vai ser? – Perguntou o tatuador.

– Depois de Gabriel, escreva Garcia Marquez. Em cima do escudo do Flamengo, desenhe um coração bem grande e pinte-o completamente de preto. E nem senti dor enquanto o tatuador fez o seu trabalho.

O amor acaba. O meu acabou na última tragada de cigarro, o filtro ainda queimado nos dedos trêmulos, a bagana jogada na encruzilhada do lago frio lá fora, aquele mesmo lago que descarrega num rio em busca da cachoeira, a correnteza das águas borbulhantes, mas que nunca sorri.

Acabou. Não volta mais.

Sozinha novamente – suspirei – e depois mergulhei o meu corpo nas noites tormentosas, enrolada num cobertor, aprisionada no canto da masmorra, os pulsos envoltos em algemas de aço entre duas rochas, enquanto a garganta ressecada impede o soluço, mas não as lágrimas.

Elas rolam, rolam, rolam no meu rosto febril…

O diabo debaixo da árvore num dia frio

Machado de Assis, o pilar da literatura nacional, disse: “ Há um meio certo de começar a crônica por uma trivialidade. É dizer: Que calor! Que desenfreado calor! “
Mas acontece que estamos no inverno e faz um frio dos diabos lá fora. Sempre achei essa frase descabida: um ser do inferno como o diabo, não deve gostar do frio.
O sopro louco dos ventos frios, se tem algo de bom, é aguçar a imaginação.
Otto Lara Resende, certa vez escreveu sobre o alívio de nunca ter sido apresentado ao diabo: “é que, assim como André Gide, depois de uma boa conversa, sofro a tentação de entender as razões do adversário”.  Desconfio que também sofro desse mal.
Em tempos de frio, os olhos embaçados pelo nevoeiro, todos os seres são gatos pardos. Está tudo tão certo e calmo, o casaco, um copo de chocolate, a quentura do meu quarto. Mas alguma coisa me chama até a janela e consigo ver: na esquina, duas árvores em meio à neblina, entre elas, caída ao chão, uma figura de traços humanos tremendo de frio. Eu devia voltar para debaixo das cobertas, ainda é muito cedo, o sábado mal começou, mas não existe sujeito mais curioso que escritor. Desço a escada, caminho firme e as palavras de André Gide se misturam a uma espécie de grito na minha cabeça: que escritor nunca quis conversar com o diabo?
Chego sem disfarçar, um sorriso falso na cara: Que nome devo chama-lo? Tem tantos. Ele me olha, parece ler pensamentos, mesmo quieto, ouço a sua voz: “mania boba dos humanos dar vários nomes à mesma coisa, um rio é água que corre, o mar é água que se levanta e todos os homens são filhos de Deus”.
Balancei a cabeça, optei pelo mais usual:
– Olá, senhor diabo!
Ele me olha com olhos brilhantes, os lábios cortados pelo frio e a boca de sede.
– Oi, como vai? Frio demais, não é mesmo?
– Ah sim, detesto. Saudades do sol.
– E eu, das labaredas.
– Mas existe inverno no inferno?
– O inferno é aqui.
– Entendi.
Silêncio. Não me chega assunto. Ele sorri. Anoto na mente os detalhes para escrever mais tarde:  o diabo não tem chifres, nem rabo, de perto não é vermelho, é branco, olhos azuis, um furo no queixo, bastante alto, embora encolhido por causa do frio. Ele pousa o cotovelo no tronco da árvore, num sorriso sem fim, como se soubesse que eu estava analisando a sua aparência:
– Vocês escritores, bah! Cada um me vê de um jeito diferente.
Tarde demais para recuos, prossigo atento aos detalhes:  O bigode fino, do tipo Dick Vigarista e a barba por fazer, a queda dos cabelos disfarçada num chapéu cinza das abas largas, enfiado até quase as grossas sobrancelhas. Tremia, fazendo balançar o casaco de pele de raposa. Um desassossego me passou pela cabeça, eu não creio no diabo, por que diabo então ficar dando conversa para ele? Tentei sair de perto, voltar para casa, mas existia uma expressão de inquietante curiosidade no olhar do diabo. Será que ele também está me analisando friamente?
Ele gira o dedo no ar, se faz sério:
– Viu o que eles estão fazendo? Depois, a culpa será minha.
Pensei responder, mas ele faz com as mãos gestos de armas, uma quase ordem para que eu me calasse. Obedeci, quieto e atento ao desabafo do diabo.
– O ruim para mim é que o tempo não passa, os ponteiros do relógio estão sempre marcando quinze para as nove e o som que escuto é o mesmo turbilhão de lamentos, a bomba a explodir dentro da minha cabeça não cessa…
– Será que é correto sentir pena do diabo? Falei sem pensar. Ele largou os ombros após o suspiro:
– Sim, eu criei a fome, a miséria, o ódio. Mas o homem aperfeiçoou todos os meus inventos.
Assenti com a cabeça.
– Tem um cigarro? – Me pediu, ameaçando tossir, a mão direita fechada se aproximando da boca. Cheiro de enxofre. –
– Parei de fumar, mas na divagação da escrita, tenho sempre por perto uma carteira de cigarros, daqueles que solta fumaça com menta ao apertar uma bolinha no filtro.
Os olhos do diabo se tornaram sedentos. Acendi o cigarro, dei duas tragadas e passei para ele.
– Não fique com pena de mim, não pense que sou um pobre diabo, eu sou o mal que caminha. Embora os humanos tenham feito de tudo para me acompanhar, eu prossigo sendo o maldito, o inimigo, o capeta.
Largou um suspiro, tragou o cigarro duas vezes seguidas. Reparei que seus olhos, de perto, possuem bordas amarelas. Baixou os olhos por instantes, mas logo se ergueu, numa voz de lamento:
– Eu escuto todas aquelas orações…
O dia nublado, os olhos do diabo também nublados e eu pensando no que se passaria pela cabeça da minha mãe, devota de Nossa Senhora Aparecida, se me visse ali, naquele dia frio, entre duas árvores, conversando e fumando um cigarro com o diabo.
Um pensamento me assomou: e se ele pedisse perdão? O diabo sorriu, armou no rosto o desdenho daqueles que ouvem os pensamentos:
– Perdão é para quem peca. Eu inventei o pecado!
Pensei dizer algum consolo, os fantasmas de André Gide e Otto Lara Resende me cercando num abraço. O diabo balançou a cabeça e me calei, sem me importar com a fumaça de frio que engoliu os dois fantasmas.
 –  O que eu não daria por um pão com manteiga, um pingado bem quente e um minuto de silêncio? Quando penso no homem que deseja ser imortal, chego a sorrir. Recentemente, um humano retardado disse que eu inventei os Beatles. Os Beatles? Pode algo tão estúpido e descabido? E Beethoven, fui eu também? Então, se assim for, sou Deus.
Uma ligeira comoção me assomou, ergui os braços e tentei tocá-lo nos ombros. Ele me olhou enfezado, jogou com a ponta do dedo indicador a bituca do cigarro longe e sua voz era outra, forte, determinada, quase um trovão:
– Não se apegue a mim. Aleister Crowley tentou e se deu mal.
Sorriu ligeiro, depois baforou nas mãos o frio em forma de um jato de fumaça.
– Ultimamente me sinto um tanto ultrapassado, como um velho aposentado, dando milhos aos pombos, sem perceber que os pombos aprenderam a voar para longe, tempos atrás. Não consigo pensar em outras maldades, sou como o compositor que já não consegue entender as cifras das canções.
– Mas essas desgraças que se vê por ai… – O diabo não me permitiu concluir.  –
– É tudo ideia dos homens, coisas que lhes ensinei enquanto tocava saxofone e aprenderam rapidinho, entenderam perfeitamente o meu sopro, muitas vezes desafinado e construíram uma orquestra tão perfeita que dispensa a batuta do maestro. Sou um pobre diabo, vivo de pequenas artimanhas, meu passatempo predileto atualmente é perturbar os poetas, chego perto e sugiro num sussurro: borboleta. E o poeta começa a pensar no casulo, na lagarta, na metamorfose e na cor das asas que dará à sua borboleta. Então dou um jeito de derrubar alguma coisa, faço o barulho de um inseto voando, desenho no ar uma conta a pagar, acendo o pavio da ira da vingança, o faço recordar do amargo pecado de outrem, daquele que não se consegue perdoar, lhe mostro o rosto distante de uma mulher, ou de um homem, lindos, perfeitos,  cuja conquista nunca ousou tentar e o poeta titubeia. E hora de apertar a buzina de um carro, algo assim, e o poeta coça a cabeça, se esquece da luz brilhante do início do poema e começa tudo de novo, a borboleta já não terá asas e o casulo será uma casa de portas trancadas a trinco do lado de fora. O poeta insiste, ele precisa escrever, a febre lhe escorre pela testa, então vou lá e assopro uma palavra sem graça, sem sentido: abajur. Então o poeta pensa numa mesa de lençol esticado, o beiral de uma cama, uma linda mulher, ou um lindo homem se aproximando…Novamente faço barulho, revivo o inseto voando num aterrador zumbido  e ele não pensa em mais nada, vai dormir aborrecido, certo de ter perdido algo que estava entre os dedos, os mesmos dedos que esmagaram a linda borboleta com uma certeira pancada de abajur.
Coço a cabeça, falo sem sentir:
– Hoje eu pensei algo assim… A lagarta saindo de um casulo, qual cor darei à borboleta, azul talvez, mas depois o celular tocou e esqueci tudo.
– O celular…Talvez seja a minha melhor invenção.
Meu rosto ameaçou um sorriso, ele se fez sério:
– Você é ingênuo, pensa que me vê, mas isso é coisa de escritor, vê o que ninguém mais enxerga, finge sentir dor, como disse aquele bardo português, mas na verdade, bem lá no fundo, não está vendo nada, sabe que não passo de um galho de árvore que o vento frio derrubou em meio a duas árvores frias.
E um sopro repentino e gelado envermelhou meu rosto. Esfreguei os olhos, girei os calcanhares e voltei para casa sem olhar para trás.
Um galho de árvore…
Quantos dias ainda teremos desses dias delirantes de frio?
Se eu acreditasse em alguma coisa, juraria que no último instante, pelos cantos dos olhos, vi um bodezinho campeiro correndo ladeira abaixo, assim que o vento gelado voltou a soprar.

Buraco de minhoca

Nessa manhã, quando acordei, a brisa fria me apanhou num repente. “Venha, abra a janela, observe lá fora, falta pouco para você completar quinze anos”. Esfreguei os olhos, tive um sono pesado, uma viagem ao futuro, quando todos ficaram trancados em casa, com medo da morte invisível  escondida lá fora. Um banho gelado, sabonete de coco, os cabelos que insistem cair, a hora do trabalho que chega depressa e preciso correr. Tomo o Café e me atrapalho ao vestir a camisa, as mangas voam, meu braço demora a encaixar. Minha mãe surge, sorrindo da minha falta de jeito, um beijo na testa e o mundo se mostra ao abrir a porta. É dia claro e a lembrança do sonho me faz estranhar tantas pessoas nas ruas, juntas no ponto de ônibus, ninguém usando máscaras, os abraços, o aperto de mãos, o beijo de um casal. Meus joelhos não doem como no sonho, não sinto medo da morte, o que sinto, diante daquele dia azul, sol aberto e vento gostoso,  é a mesma sede de tudo saber, a conhecida ansiedade de sempre.
O vento me abraça num atropelo gelado, “desculpe, eu preciso passar”, e se vai, rápido, até virar na esquina. Pisco os olhos, me convenço que o vento e o tempo são os mesmos: uma entidade intocável, imutável, muitas vezes cruel. Pedaços de vidros não são diamantes e as páginas do meu livro estão abertas, têm poucas tintas, não tenho nem quinze anos. O que vai acontecer é um prato sobre a mesa e a cabeça recheada de sonhos. Procuro alguém com quem conversar, mas a menina dos dentes de ferro mal sabe da minha existência, um sorriso de passagem, nada mais, desconhece o poema que escrevi em sua homenagem, no qual ocultei a palavra amor por não saber exatamente o que sentia. Meus amigos, apenas eles me entendem, mas quando conversamos, o assunto é outro, rapazes não fazem confidências. O trem atravessa a avenida e tudo para, menos a pressa da minha alucinação. Os trilhos rangem, os motoristas seguram firme o volante, ansiosos para o último vagão passar e dar lugar à liberdade. É isso o que os homens dos anos oitenta chamam de liberdade? Eu quero voar, mas meus pés gostam da terra vermelha, do cheiro da lenha cortada, da fumaça escapando do quintal, desde quando minha avó riscou a chama nas folhas secas varridas e o cheiro do mato ficou grudado em mim.  Em segundos um filme se passa na minha cabeça, eu não quero mais ir embora da minha cidade: o Fog londrino e a Estátua da Liberdade não mais me seduzem, eu quero é grudar minhas unhas no meu chão. O ônibus caminha calmo, masco o chiclete de menta na boca, mandíbula em movimento move o mento e sinto o prazer do hálito puro. A paisagem me alucina, observo as laterais: muros brancos demais, paredes lisas, portas com trancas, elas me atraem, a mão chega a tremer, mas sei que a tinta sairá em desalinho, um tanto incompreensível: quem conseguirá entender um rapaz latino americano sem dinheiro no banco enxergando o futuro? O meu pai está por ai, numa dessas ruas, mas já não sinto necessidade de encontrá-lo. Sumiu no beco tempos atrás, foi engolido pela tempestade. Meus amigos vão ao culto e eu prossigo oculto, duvidando de tudo, achando graça das roupas brancas, em contraste com as minhas coloridas, e sentindo imenso alívio quando dizem amém. É o final e só então consigo sorrir. Li um livro semana passada e fiquei impressionado, não tanto com a personagem principal, mas com as duas divindades que possuem intimidades com o tempo: o Chapeleiro e o Coelho Branco. Estou sempre atrasado e não sei exatamente o porquê? Queria ter o conhecimento do Chapeleiro, ele tem respostas para tudo, porque as espinhas no meu rosto causam a dor inesperada, tal e qual os pelos que de repente começaram a surgir. Eu raspo e a lâmina me corta, fico pálido, a olhar de lado, preso ao medo que algum adulto apareça e tome meu sangue como motivo de susto ou risada. O tempo é um senhor, disse o chapeleiro, mas Alice não acreditou, ela é jovem como eu e nós só temos sonhos, um mundo abaixo da toca da árvore, cujo portão de entrada está escrito em letras garrafais: proibida a entrada do tempo. E o ônibus parou afinal, desci carregando a rufada de palavras na cabeça, perguntas sem respostas, amanhã ainda é longe, eu só tenho quatorze anos. No fim do dia, ao me deitar, penso no sono de antes e o desassossego me abrange. Pego um pouco de Renato Russo, restos do Chico Buarque, misturo com o Biafra e saem os versos em desalinho, balançando na cabeça e aos poucos me acalantam: O que fazer de mim, se o sol nunca mais vai se pôr, se o meu sangue errou de veia, perdeu o caminho (na bagunça) do seu coração, me fazendo confundir a hora de ir, ir por onde ninguém for e o que restou foi essa vontade imensa de sentir o que eu não posso ter. E o sono chega de leve, enquadrado pela janela, trazendo um medo ligeiro de voltar ao futuro, embora eu saiba que por lá, muita gente me aguarda ansiosa.

Cenas do bar – Deus, o baseado e eu.

Meu nome é Vladimir de La Mancha e só tenho medo de dentista.
Recentemente, por causa do confinamento, descobri que solidão é um bicho maldito. Andei caçando coisas para fazer aqui no apê e até descobri cinco ou seis baseados antigos, enrolado num papel reciclável, guardados no vão do colchão.
O troço é da hora, extremamente relaxante e das asas leves como plumas. Mas fez bater uma pequena insônia, talvez fruto do medo da solidão. Ah, para com isso, eu só tenho medo de dentistas.
Onde deixei o vidro de rivotril?
Tinha um resto e eu precisava tomar. Ou será que já tinha tomado antes de deitar?
Fiquei buscando imagens, tentando dormir, pensei numa moça que vi usando máscara vermelha, passeando pela calçada sem se preocupar com os meus olhos de lince. Parece a Joana Prado, a Feiticeira, uma mulher linda do passado que usava máscara num programa de tevê.
Bons tempos.
Adormeci levemente e acordei num repente, um barulho de coisas se mexendo. Como a diarista não está vindo e eu sofro do mal da preguiça, o apartamento está uma bagunça, com restos de pizzas pelos cantos.
Tenho me alimentado mal, geralmente restos de pizza e vinho morno, amanhecido fora da geladeira.
O barulho prosseguiu e pensei na morte. Pensar positivo é sempre importante nessas horas: deve ser um rato.
Semana passada armei uma ratoeira bem perto da cama, gosto de ouvir quando dispara e o bicho dá aquele último grito de desespero.
Apurei os ouvidos e de longe veio a voz, que foi aumentando:
– Socorro, me tire daqui! Gritou o rato preso pelo rabo.
Levantei no susto e pensei sair correndo. Uma força sobrenatural me prendeu. Resolvi falar com o bicho:
– Porra, que merda é essa, você fala?
Ele me encarou como nunca um rato havia me encarado:
– Claro que falo, eu sou o criador.
– Oi? Como é?
E então surgiu a primeira intimidade:
– Me tire daqui, Vladimir.
– Você me conhece?
– Claro que conheço, você e todo mundo, já disse, eu sou o criador.
Ri com o canto dos olhos.
– O criador?…Tipo…Deus?
O rato balançou a cabeça num início de irritação:
– Tenho vários nomes. Mas é isso, eu sou Deus.
Deixei o ombro cair e busquei com os olhos o baseado ainda aceso no criado mudo.
– Ah, num fode, você é um rato.
– Vladimir, não quero dar explicações, me tire daqui!
– Uai, se você é Deus virado num rato, tem poder, então é só desvirar.
– Não consigo, a mágica do rato é pelo rabo e você armou essa porcaria dessa ratoeira que arregaçou exatamente o rabo.
Ah, será que ainda sobrou vinho? O rivotril secou?
Pensei um pouco, ele tinha os olhos bondosos e um jeito franco de me encarar. Na literatura, geralmente, ratos são bonzinhos. Preciso consultar aquele meu amigo.
– Rápido Vladimir, está doendo!
Balancei a cabeça, agachei e tirei o rabo do bicho da armadilha. Puft! Uma nuvem branca se formou após uma pequena explosão. Então o rato se transformou em um senhor bem velhinho, dos cabelos brancos esticados, os olhos meigos e usando óculos. Achei estranho, por que Deus usaria óculos? Ele pareceu ler o meu pensamento:
– Charme…
Não quis discutir, nem mesmo levantar suspeitas, coisas implicantes, como o fato de que os óculos estavam embaçados. Ele me encarou como um mendigo agradece uma moeda.
Devo confessar que ele pisca demais e nunca gostei de gente que pisca demais. O danado lê pensamentos:
– É um tique nervoso apenas, não ligue.
– Entendi…
– Bom, você fez uma boa ação e merece uma recompensa.
Estou pensando dar uma ressetada na raça humana e é bom você escolher um lugar porque vou dar uma regaçada geral e…
– Ah, esse vírus ai, foi coisa sua?
– O corona? Cara, você acredita na Globo? O vírus corona é coisa dos chineses. Comigo o negócio é mais embaixo, já mando um meteoro, um dilúvio, uma chuva de gafanhotos… Dessa vez estava pensando dar uma balançada no mar, criar um tsunami, virar tudo do avesso, inclusive aqui onde você mora, o Mato Grosso.
– Do sul.
– Oi?
– Não, nada. Bobagem…
– Mas já que você me salvou, posso te enviar para um lugar seguro.
Meu olhos brilharam.
– Posso levar alguém?
– Claro, claro, viver sozinho ninguém merece… Escolha ai cinco pessoas.
– É tipo uma ilha?
– Ilha? É, pode ser.
– Vai ter chope?
– Daremos um jeito.
– Bom, então eu quero levar a Jenifer Lopez, a Fernanda Paes Lemes, a Flávia Alessandra, a Jéssica Alba e a Sandy.
– Sandy?
– É…eu tenho um assunto mal resolvido com ela desde os anos noventa, sabe.
– Sei…eu sei, eu vejo tudo – e ergueu as lentes dos óculos fazendo um rosto sacana. E depois os olhos danaram a piscar. Acho que é nesse momento que ele lê os pensamentos e descobre segredos, aquelas coisas que a gente quer esconder para sempre.
Ele piscou cinco vezes seguidas.

Fiquei com um medo danado que ele se lembrasse de mim criança, quando eu matava as galinhas da vizinhança para fazer um penacho e imitar o índio do Village People. Eu não sabia que ele era gay, pensei e ele escutou, fez cara de enfezo, sem abrir a boca me chamou de homofóbico.

 – Maluquice essa sua ideia.

– Maluquice?

– Você quer mesmo levar cinco mulheres para uma ilha deserta? Tem ideia do inferno que elas vão transformar o lugar logo nos primeiros dias?

– Você acha?

– Cara, eu não acho, tenho certeza. Ah até hoje, quando me lembro do pobre Adão…E olha que ele estava só com uma.

– Eva né?

– Não, Eva veio depois. Adão estava com Lilith… cara, que inferno! Pobre Adão…

Fiz cara de compreensão, mesmo não sabendo nada sobre a tal Lilith. Sempre tive curiosidade de saber se Adão e Eva tinham umbigo. Cheguei a abrir a boca para perguntar, mas ele falou primeiro.

– Tédio é uma das minhas piores invenções. Sim, sim, eu também sinto tédio. A sorte que sou Deus e daí posso criar umas fugas. Hoje por exemplo, pensei, estou com vontade de ser um rato ladrão de restos de pizzas…

– Bom, o senhor…

– Não precisa me chamar de senhor, pode ser você…

– Tá…então o senhor, digo, você acha que eu devia levar homens também?

– Sim, pelo menos dois, para dar uma equilibrada sabe?

– Bom, tem aquele meu amigo escritor.

– Não, não…aquele não.

– Mas…

– Não gosto dele, muito metido a querer saber demais, sempre duvidando, perguntando coisas, qualquer motivozinho já escreve um texto me questionando….ele não.

– Ele não?

– Escolha outros dois.

– Eu gosto do Bruno e Marrone.

– Bruno sim, Marrone não.

– Ah?

– Bruno bebe, fica bêbado, é legal. Marrone é mudo e chato.

– Tá…Tô aqui pensando outro…

– Eu não tenho o dia todo…

Nesse momento me ocorreu uma ideia e olhei para o canto da casa, a velha bateria repleta de pó, as baquetas segurando a trava da janela. Sonho antigo que deu em nada, eu e meus amigos formamos uma banda, a “Junta do cabeçote” nome de duplo sentido, porque tal e qual o motor de um carro, as mulheres não nos entediam, também porque achamos o máximo tirar onda com a foto que seria da capa,  homens juntos e coçando os cabeçotes.

As mulheres odiaram, “ideia podre’ disseram, rogaram pragas e a banda não decolou de vez.

A pretensão era desbancar a banda RPM, fizemos até uma música “Morena quente”, em contraponto às Loiras geladas deles. Já no início descobrimos que não sabíamos tocar bem nenhum instrumento e muito menos cantar.

O sonho foi para o saco, com cabeçotes e tudo.

Deus piscou os olhos duas, três vezes…Hummm, recriar a Junta do cabeçote…Boa ideia!

E continuou pensando e piscando, apanhou o baseado ainda pela metade no canto da cama, deu duas tragadas longas e depois me encarou.

– Vou para casa pensar nessa sua ideia. O acordo do Paulo Ricardo com Lúcifer sempre me incomodou, preciso dar o troco. Volto quando tiver com tudo pronto.

Acordo do Paulo Ricardo com Lúcifer? Mas é claro, pensei, por isso o filho da puta nunca envelhece. 

Sorri meio sem jeito enquanto Deus dava mais uma tragada no baseado, chupando até o final sem queimar os dedos.

Resolvi aproveitar para uma última questão:

– Ah, uma coisa, o meu amigo escritor, sabe, era ele que escrevia as músicas…

– Ele escreve inspirado em mim e nem desconfia. É um chato…Tudo bem, pode levar ele e os outros três amigos.

– E as mulheres?

– Só a Fernanda Paes Leme e a Lidia Brondi.

– Eu nem pedi a Lidia Brondi.

– Mas pensou. E eu gosto mais dela, sempre recatada, certinha, afastada há quanto tempo? Nem eu sei. Está na hora dela dar umas sacudidas.

– E a ilha, posso saber onde é?

– Ilha? Ah, não vou mais acabar com o mundo.

– Não?

– Eu estava entediado, mas essa ideia de recriar a Junta do cabeçote foi demais, já estou até vendo as manchetes.

– Mas…Deus, é que nós não sabemos direito…

Ele piscou no mínimo dez vezes, vi os brilhos escaparem do seu olhar.

– Seremos um quinteto. Eu serei o guitarrista e vocal principal.Foi assim com aqueles rapazes de Liverpool …

Meu olhos não parava na cara. Liverpool, Beatles, o quinto Beatle era Deus? Ou será que ele era um deles?

– Me chamavam de Johnn…Daí Lúcifer mandou um dos seus capangas acabar com a brincadeira…

Fiquei pasmo, sem palavras.

– Mas e as meninas, elas serão parte da banda?

– Sim, claro, no começo backing vocal e bailarinas, depois eu penso em algo mais.

E nem falei mais nada, ele fez um gesto com os dedos, tipo despedida, se transformou numa mosca e voou até o vão da janela.  Bateu no vidro, escapou para o canto fechado, zumbiu desesperado, bateu as asas freneticamente até finalmente encontrar a saída e desapareceu no céu aberto.

– Danado, por isso ele usa óculos…

Achei o vidro do rivotril, bebi dezoito gotas e cai num sono absurdamente pesado.

Quem sabe amanhã Deus volta, quem sabe…

O sorriso da orquídea

Eleanor imaginou que talvez somente ela tivesse reparado a mudança; as cores das flores do jardim estavam diferentes, o verde caído, o brilho fosco nas margaridas, a rosa vermelha transformada em cinza e o jasmim com as pétalas abertas num branco sem vida.

Carlos dizia enxergar o sorriso das flores. Num passeio, entrou na mata à procura de tesouros e de lá retornou trazendo um pedaço de tronco de árvore com um filete de rama verde escapando entre as frestas da madeira.

Eleanor sorriu surpresa, ele tratou de pôr fim ao espanto: “é uma orquídea, deste tronco logo nascerá uma das mais belas flores do universo”, disse enquanto repousava o tronco da árvore no seu colo. Naquele instante, dos olhos de Carlos escapou um brilho intenso transformado numa lágrima incontida de canto, enxugada às pressas nas mãos trêmulas de emoção.

Eles não sabiam, aquela lágrima era sinal de adeus. “Um dia, me encontre numa flor”, foram as últimas palavras de Carlos.

Para matar o luto, Eleanor coloriu o quintal da casa com flores diversas, mas nenhuma conseguia resplandecer brilho suficiente para suportar tamanha dor.

Do tronco que guardava a orquídea – cuidadosamente preso a um arame na parede da varanda – brotou uma flor magnífica, de três pétalas marrons e no centro a figura de um macaco. Olhando atentamente, a orquídea parecia lhe sorrir. Era espantosa e ao mesmo tempo cativante. As lentes dos óculos estão novamente embaçadas, pensou. Mas após esfregá-las com todo cuidado, e lançar o rosto até junto à planta, o macaco permanecia lá, mostrando o seu indefectível sorriso.

O passar dos dias, perdurando na mente a amarga angústia, transformou o rosto de Carlos na mesma feição dolorida de Rimbaud. “Me encontre numa flor”, a frase incessante assoprada pelo vento a fez recordar um livro antigo que falava sobre o sorriso das flores após a tempestade. Procurou-o até encontrar.

Antes de enlouquecer, porque começou a falar com a orquídea como se fosse Carlos, resolveu mudar a planta de lugar, num galho do pé de magnólia, pouco distante da janela do quarto de dormir.

No apagar das luzes, entre o cochilo preso nas pálpebras cansadas, restava o brilho fraco do vidro da janela, um último olhar de soslaio. E lá fora, o macaco prosseguia sorrindo, apontado para ela suas pétalas marrons, como quem pede um abraço.

De repente a luz do sol invadindo o quarto, outro dia, o sono pesado que a fez desabar pelos lençóis da cama pouco antes. O levantar trôpego, as mãos tateando o nada à procura dos óculos, a garganta seca pela estiagem, ardendo no gole do copo d’água que deixou pela metade, atiçada pelo bater de asas dos beija-flores na varanda da vizinha. Por que os beija-flores de repente só se vestem de cinza? 

Na brisa lá de fora sentiu o cheiro das plantas, o mesmo de sempre, mas as cores das flores estavam diferentes.  O céu cinza sem nuvens refletia a estiagem, um resto de mata ardente – talvez seja isso, imaginou – formando rugas acima dos olhos, a mão direita tampando o sol. As pessoas cruzaram a praça num ritmo acelerado, sem olhar para os lados. Um tanto acabrunhada, Eleanor ergueu o rosto para o alto, fumando o vento, ajeitando o aro dos óculos no nariz enquanto tentava prender a presilha nos cabelos rebeldes. Apanhou uma flor do canteiro, ainda ontem era uma reluzente petúnia azul – suspirou – a mesma cor que sempre imaginou ser do mar, mas agora estava cinza feito o céu. A antiga vontade de conhecer o mar havia deixado num canto, sem Carlos o mar não tinha razão; era imenso e azul, às vezes verde, trazia ondas enormes que desabavam na praia, mas nada sabia sobre flores sorrindo. Acelerou os passos, mordeu os lábios para não dizer nada, alguém haveria de perceber e também exclamar, afinal, flores não mudam de cor. No ponto de ônibus, as pessoas, como se combinado, trajavam roupas opacas, os bancos do ônibus também estavam diferentes, acinzentados, não existia mais o amarelo de ontem, a camisa do motorista, antes de um azul claro vistoso, agora transformada numa tristeza bege. Um olhar em volta, novo assombro, os ipês só deram flores marrons e algumas cinzas.  Que estranho ninguém perceber, pensou, fazendo um olhar franzido. Limpou os óculos com tecido de lã num leve passar dos dedos, ajeitou o corpo rapidamente e retirou da bolsa um livro da George Sand, costume antigo, ler no ônibus, em pé, com uma das mãos segurando o ferro de proteção e a outra equilibrando o livro aberto. O mundo em volta se apagava e o som que ouvia era do vento assoprando um vasto campo florido. Eleanor era uma jovem nascida com tempo para tudo, até mesmo para observar detalhes, as pequenas mudanças, mas não reparou que a literatura francesa estava em desuso e somente ela naquele ônibus lotado sabia porque George Sand usava calça comprida e fumava charutos em público. Um sacolejo no asfalto ruim, a volta à realidade momentânea, o olhar em volta, pessoas vestidas de cinza, como pardais sem plumas, traduzindo a certeza: ninguém por perto conhecia George Sand. Vinte e sete páginas até o ponto final e a história vagando na sua mente.

As duas árvores que ornavam a frente da empresa a receberam num abraço de frondes cinzentos. Na entrada, o quadro de Van Gogh se mostrou apagado, repleto de girassóis mortos. Segurou firme o cartão de ponto, antes amarelo e agora bege feito um pano de chão. Ao passar pelo espelho, imaginou ter se enganado com o vestido, não era daquela cor, embora o corte fosse muito parecido. O rapaz musculoso da copiadora passou por ela esparramando pelo ar um perfume azedo que embaçou de vez as lentes dos seus óculos. Os olhos negros de agora, ontem eram castanhos – pensou – e logo teve pressa, ajeitou o corpo no vestido e arrumou a presilha na cabeça, a velha tendência a fugir de situações embaraçosas. Seria uma má sina – suspirou – ter os cabelos ruivos e os olhos azuis se os cabelos rebeldes viviam brigando com a presilha e os olhos bonitos se escondiam detrás das lentes dos óculos.

O dia passou depressa. No retorno, as luzes da cidade estavam opacas e um vento repentino trazia o cheiro de chuva. De novo o livro numa das mãos, a outra mão segurando o ferro da sustentação, um breve sorriso abraçando a imagem no pensamento: George Sand enxergava o sorriso das flores nos campos encharcados enquanto Chopin tocava piano após a tempestade.

Novamente em casa, se deparou com as paredes tomadas de uma inesperada cor de avelã. Se deteve num olhar sob a paisagem escura, em volta tudo coisa gasta. Demorou mais que o habitual para encaixar a chave na fechadura, assombrada pelas flores do jardim, envoltas numa cor de pólvora. Tateou a parede até encontrar a tomada da luz, mas a escuridão permaneceu em volta até limpar os óculos, a quietude quebrada por pequenos ruídos, a gaveta se fechando levemente na cozinha, a porta da geladeira se abrindo, a fumaça do cigarro desenhando um círculo marrom e, num costumeiro arrepio, sentiu o medo kafkiano de se transformar numa barata. Ao menos as baratas podem voar e desconhecem as cores das flores – pensou em meio a um sorriso tossido.

No fim daquela noite caiu uma chuva fininha, que foi aumentando até se tornar temporal e Eleanor enxergou quase nada, apenas a janela baça segurando os pingos fortes que lhe batiam num tamborilar nervoso.

No clarão do relâmpago, lá fora, a flor com cara de macaco sorria para ela.

Conforme a chuva aumentava e envolvia a janela no seu manto de águas incessantes, desde o pé de magnólia a orquídea ganhava vida, vindo acelerada até a parede do quarto, abraçando completamente o vidro da janela.

Já não tinha a cara de macaco, era rosto de gente, primeiro Rimbaud, depois Carlos, encharcado pelos pingos da chuva, as pétalas balançando de um lado para o outro, pedindo para entrar.

Eleanor enxugou a lágrima fina no canto dos olhos, sorriu timidamente, é apenas o sorriso da orquídea, virou-se para o outro lado antes que a vista embaçasse de vez e desabou num sono alentador.

Sonhou sonhos bons, porque nos sonhos não existem lágrimas, não é preciso usar óculos embaçados, por lá as flores são tantas, não mudam de cor, nada se esfuma, embora somente a orquídea com cara de macaco conseguia sorrir para ela.

No canto do criado-mudo jaziam os óculos das lentes embaçadas, calmos e solenes, aguardando o fim do sonho e o retorno das flores cinzas no dia seguinte. 

O novo, de novo.

O ano
O novo
O povo, o ovo.
A faca
A fama
O povo, o drama.
O feio
O feito
O efeito
Escorrem os dejeitos;
Num mar de lama…

O conto do cavalo

Era um campo verdejante, rodeado por árvores de um verde viçoso.
Um grupo de cavalos pastava por ali todos os dias.
O cavalo mais belo era branco, da crina longa e do relinchar tão forte que acalmava o vento.
Os outros cavalos o seguiam.
Num dia de tempestade, um raio caiu perto dos cavalos e cegou o belo corcel branco.
O fazendeiro se aproximou e apontou a espingarda, mas sua filha apertou suas mãos pouco antes, apontando para o cavalo cinza que se aproximava.
O bicho cinza roçou a anca do cavalo branco, fazendo movimentos repetitivos até que o outro acompanhasse o seu trotar.
O homem recuou e secou do rosto inocente da filha a gota de lágrima escorrendo pelo rosto sardento, já armando na cabeça  uma ideia e logo a colocou em prática: prendeu um sino no pescoço do cavalo cinza e assim, a cada passo caminhado, o cavalo branco e cego o seguia através do badalar do sino.
Passaram-se os dias e a alegria estampada no rosto da filha diante da cena – o cavalo branco seguindo o cavalo cinza a cada som do sino – fazia o velho fazendeiro completamente feliz.
Mas veio outra tempestade e um raio caiu novamente, bem perto do cavalo branco.
O bicho se levantou a custo, mas não seguiu o cavalo cinza, embora o trotar desesperado bem perto dele e o sino tocando incessantemente.
O cavalo branco e cego estava completamente surdo.
O fazendeiro se aproximou e lamentou a fatalidade: com tanto pasto, o raio caiu perto exatamente do cavalo branco.
Apontou a espingarda em direção ao cavalo branco, mas antes do tiro fatal, sua filha o apanhou pelo braço, acenando para um monte de esterco perto das patas do cavalo cinza.
O fazendeiro secou o suor da testa e fez um agrado nos cabelos da menina, absorto num pensamento de contentamento sem tamanho diante de genialidade da filha: sim, bastava encharcar a rabo do cavalo cinza de esterco que o cavalo branco o seguiria através do cheiro.
E assim foi feito.
Os dias se passaram e o fazendeiro se encarregou de todos os dias abarrotar o rabo do cavalo cinza de bosta, logo no amanhecer do dia, sempre ao lado da filha e seu indefectível sorriso.
Mas as tempestades nunca tardam.
Num dia que o tempo mudou de repente, um novo raio caiu no campo verdejante, acertou o chão, veio correndo e atingiu o único bicho que não correu – porque não viu a luz do raio, não escutou o barulho do trovão e o cheiro da bosta não foi suficiente para alertá-lo a tempo -.
O fazendeiro coçou o nariz e depois o cocoruto, triste ao verificar que o cavalo branco não mais conseguia sentir o cheiro de nada.
Cego, surdo e sem olfato.
Apontou a espingarda e olhou para a filha. A menina apenas chorava. O fazendeiro respirou fundo, recolheu os ombros por instantes e logo depois apontou novamente a espingarda para o cavalo.
De repente, num raio de luz, a menina correu afoita na direção do pai, havia concebido uma nova ideia e o sorriso cortou o seu rosto infantil.
Mas não teve tempo de chegar até o pai: num trotar cego, surdo e sem cheiro, o cavalo branco foi à sua direção num magnífico relinchar e lhe desferiu um certeiro coice.
Com as duas mãos na cabeça, o fazendeiro correu até a filha caída, desacordada.
Respirou aliviado ao perceber que apenas desmaiara.
Então levantou-se, apanhou a espingarda, apontou na direção do cavalo branco e atirou certeiro na cabeça do bicho que já devia ter morrido no primeiro raio…
A menina acordou e não se lembrava de nada, na cabeça apenas um som misturado de trovão com relincho e a imagem embaçada de algo muito grande e branco despencando entre o verde viçoso da campina.

Um conto de bichos

De repente a floresta ardeu em chamas.
Os bichos, aturdidos, não sabiam o que fazer.
Em meio à áspera nuvem de fumaça, surgiu um belo passarinho carregando um pouco de água no bico. Corajosamente sobrevoou o foco do incêndio e lá atirou as gotas de água que conseguiu ajuntar.
O macaco sorriu, apontou para o passarinho: “sai daí bicho estúpido, você jamais conseguirá apagar o incêndio”.
O passarinho, que sabia falar a língua dos macacos, respondeu: “sei que não apagarei o incêndio, mas estou fazendo a minha parte”.
Os outros bichos se entreolharam, surpresos.
Deu-se um ameaçador silêncio, nem mesmo as hienas foram capazes de sorrir.
O rei Leão resolveu agir, fazer valer sua liderança, ordenou que o elefante enchesse a tromba de água e ajudasse o corajoso passarinho.
Um tanto contrariado, resmungando que outros poderiam ajudar de alguma forma, o elefante caminhou até o rio e encheu o quanto pode de água a tromba.
O leão pensou dar ordens ao jacaré, um pensamento corrido, talvez com uma boca tão grande, poderia enchê-la de água e ajudar o elefante e o corajoso passarinho.
Mas o jacaré fechou os olhos e mergulhou na água profunda. Ali estava livre do perigo das chamas e disso sabia muito bem.
O fogo aumentou, o passarinho continuou fazendo sua parte enquanto o elefante desistiu na terceira tentativa. Quando os bichos esperavam pelo pior, quando o calor das chamas já chamuscava todos os pelos, detrás do sol partiu uma imensa nuvem negra de chuva.
E o temporal desabou em poucos minutos, apagando o incêndio.
Depois de horas, o incêndio já não existia, apenas o cheiro de queimado insistia a pairar pelo ar.
Assim que tudo se acalmou, entre lágrimas incessantes, a raposa trouxe entre suas patas o corpo ainda fumegante do passarinho.
O leão se aproximou, fez um gesto de carinho na cabeça do passarinho e logo depois o devorou.
“Nunca confiei nas raposas.”
Disse entre dois arrotos com gosto de carne explodindo. Depois estalou os dedos:
– Não existe nada mais gostoso do que passarinho assado”.
E a vida voltou ao normal na floresta.

O admirável campo dos girassóis

A luz dos meus olhos falhos,  assoberbados pela tristeza, escala um resto da estrada desviada; pegadas marcantes, rastros nítidos, a cabeça baixa, contando o que sobrou.
A tempestade se formou bem antes, mas pensamos que sequer choveria.
Sobra a brisa quente do vento e o buraco oco no qual a água da chuva balança, como um tremor.
Sinto o bafo quente da melancolia e quase choro.
O meu ideal seria escrever sobre flores, mas qual flor se pode desenhar nesse momento tão amargo?
Pensei na rosa, mas a rosa é meiga, não traduz o lamento em forma de chama sem pavio.
Em momentos assim, permito a estranheza de perfumes me conduzir a lugares distantes.
Perto da grande cidade, existe um enorme campo de girassóis. Muitas pessoas já foram lá e eu, incorrigível preguiçoso, fui adiando a viagem.
Fecho os olhos e imagino o lugar…
Logo, dou de frente com o admirável campo dos girassóis, o verde e o amarelo espalhados a cada palmo de terra. Uma senhora do semblante faceiro acena para mim e devolvo o sorriso da cor dos seus cabelos de algodão.
Para onde o sol obriga que os olhos dos girassóis se encaminhem?
Após alguns passos, um homem do campo caminha carregando pela rédea o velho cavalo, passa por mim num aceno de puxar a ponta do chapéu.
Será que ele sabe a novidade?
Pressinto num respirar a resposta, ainda tenho boca para sentir e olhos para comer: o pasto por onde cavalgam os girassóis é admirável, é um novo lugar.
Vou tirar uma foto e ir embora depressa – penso – mas não me agrada a ideia de juntar minha imagem a uma flor,sou bruto, nada fotogênico, o rosto grande demais para caber engalfinhado às pétalas dos girassóis.
Aqui dentro terra batida, lá fora a febril oração: Nietzsche errou, a arca de Noé se move acelerada, mostrando a inquietante verdade: Deus está mais vivo do que nunca.
O sol ordena, o girassol nem se espanta, prossegue cego, singrando a terra, embora os calos nas mãos resmunguem que é preciso dar muito mais do que receber.
A página atual não tem cheiro, mas quando esmurrada, se transforma em perfume francês.
Um grupo de jovens passa por mim – eles não sabem o que eu sei –, os braços erguidos para cima, seus olhos de escuridão não percebem que a iracunda engrenagem, aos poucos, será tomada pela ferrugem do novo.
Numa visão turva, eu vi a fome em meio a plantação e larguei no ar um suspiro de lamento, serão quatro as estações ouvindo este prolongado eco do trovão.
O calor insuportável de fim de tarde me sufoca, enquanto os vitoriosos se afastam, sem perceber que os raios do sol podem matar.
Na fineza dos detalhes, observo – escondido em algumas pétalas amarelas – besouros dos chifres pontiagudos e um estranho brilho de seda nos cascos escuros.
Nesse calor insuportável, é preciso desatar o nó que não tem ponta. Abraço a esperança: se um dia lá atrás, resistimos sem medo, novamente assim haverá de ser.
No momento de abrir os olhos e ir embora, ouço com nitidez o resistente som das flores diferentes, elas me prendem um pouco mais, seguram firmes as minhas mãos, o verde musgo desprendendo do caule, envergando o pé da planta.
Sinto um sufoco de nó de gravata, o calor faz escorrer pela minha testa o suor quente, mesmo que eu ande descamisado e sem nenhuma gravata.
Tentando se achar, o dia se fecha no horizonte e um desejo final me ocorre: se o ar não nos sufocar, nascerão nesse mesmo chão, outros girassóis e deles desprenderão raízes que escalarão os muros, até dar com as vistas numa longa campina, desprezando a quentura do sol.
Abro os olhos e enfrento o início da escuridão, somente as flores diferentes na retina, aos poucos escalando o muro, desviando dos espinhos, seguindo o voar rouco dos inquietantes pirilampos a iluminar o caminho.

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